terça-feira, 11 de outubro de 2016

"A «Anarquia» e a partilha dos despojos"


"Dono do Estado, com D. Miguel no exílio e os miguelistas derrotados, o «liberalismo» tinha antes de tudo de reconstruir e «liberalizar» o país. 
Tirando uma vaga franja reformista, ninguém seriamente duvidava de que a «liberalização» devia ser a da França de 1791, com algumas correcções da França Napoleónica. Mouzinho da Silveira, um homem primário e presumido, que a historiografia posterior transformou em herói, encarnava essa convicção teórica e política. 

Mouzinho queria «libertar» a terra, a agricultura e o comércio; submeter a Igreja secular e abolir a regular; e geralmente substituir o particularismo «antigo» por uma organização e administração racional do Estado. 
Isto na prática significou a extinção de privilégios (de pessoas, de vilas, de municípios, de instituições); de direitos «feudais» de vários géneros e espécies (incluindo os direitos foraleiros, que no entanto em alguns casos duraram até 1975); da dízima, dos conventos (com excepção de uma dezena, onde se concentraram as freiras sem família ou sem meios), das milícias e da reserva territorial, a que se chamava ordenanças. 

Mouzinho também «nacionalizou» os bens da coroa, da Igreja regular e parcialmente os da Igreja secular, que adquiriram, como é óbvio, o nome patriótico de Bens Nacionais.
 E acabou com uma reforma em que dividia o funcionalismo em três ramos: judicial, fiscal e administrativo. No capítulo propriamente administrativo, criou, como Napoleão, um Estado centralizado, dividindo o território em províncias, comarcas e concelhos (...)
Como seria de esperar, esta operação brutal e abrupta estabeleceu o caos. Quando os contemporâneos se referiam à época entre 1834 e 1840-42 como «a Anarquia» não exageravam. 
As figuras tradicionais da autoridade - o Fidalgo, o Oficial de Milícias, o Capitão-Mor, o Corregedor, o Padre e o Frade - desapareceram de um dia para o outro. Em seu lugar vieram os "pachás", "subpachás" e provedores, pequenos tiranos, que ninguém respeitava e que roubavam e extorquíam (muitas vezes pela tortura), em proveito do Estado e em seu próprio proveito. Mas como o novo regime, com a dissolução das milícias e a ausência de uma polícia rural, não tinha meios para garantir a ordem na província, a dois passos de Lisboa e do Porto, o verdadeiro poder eram bandos (muitos formados a título de guerrilhas antes de 1834) que, embora proclamassem pelo «liberalismo» ou por D. Miguel, viviam de facto de assaltar as populações."


Vasco Pulido Valente, "Portugal Ensaios de História e de Política", editora Aletheia, 2009.